Uma inquietação mortal na sala de aula, lágrimas vez ou outra rolava no meu rosto e me fazia arrepiar naquela sala fria de filosofia e ilustração. Além de tudo, sentia fome, além das outras fomes que esses tempos vêm visitando meus desejos com muita intensidade, fome de comida e uma vontade quase sórdida de comer um saco de ouro branco, como se fossem salvar minha vida, pelo menos durante 1 dia. Mas voltando a realidade - Chumbinho, a única solução.Um enrolado de queijo com suco de cajá e uma balinha de canela pra depois do cigarro. Tudo fiado.
A fome devorou tudo em menos de 10 minutos, enquanto meus pézinhos dançavam tímidos o frenético eletro de uma festa de não-sei-o-que lá no ihac. Festa estranha com gente esquisita. Acho que era a galera de ciência e tecnologia, festa mais fora de contexto, só podia ser o pessoal de exatas.
Ah! Antes de Chumbinho eu estava descendo as escadas, já era o último lance antes de chegar no térreo, tinha um pessoal jogando dominó lá na mesinha na frente da escada e enquanto meus olhos identificavam esses detalhes eu lembrava da blusa de Tuco da grande família ontem que tinha escrito "De fora é minha" e pensando "Se eu fosse mais um pouquinho cara-de-pau eu pedia uma de fora, adoro dominó, acho que Deus me abençoaria com a felicidade de um lasquinê preso". E enquanto toda essa borbulhação na minha mente, o menino que tava jogando dominó parou o jogo e me deu uma piscadinha (!), eu verifiquei se era comigo, não tinha ninguém atrás de mim, mas foi tão surreal, parecendo mais uma cena de Amelie Poulain, que nem dei bola, só ri um sorriso de canto de boca, tão tímido quanto meu coração nessa época de isolamento-sabotagem.
Já depois da barriga cheia de massa com queijo duro e ketchup, fui procurar um lugar pra fumar um cigarro. No primeiro andar, não, o amigo de meu irmão tava lá, no segundo andar tinha muita gente e pela primeira vez em praticamente 1 ano de faculdade, visitei o terceiro andar.
O terceiro andar é diferente, mais vazio, mais alto, mais sério e mais saúde. Tinha uma cadeira logo na varandinha, de frente pra o canteiro de obras gigante, a biblioteca e o RU, me senti dona da UFBa e vendo minhas terras de cima, na casa grande, avistando a senzala.
Peguei o cigarro dentro da minha bolsinha, "ô, todo amassado o bichinho" e em seguida um medo angustiante do isqueiro não funcionar, isso seria sim a minha cara, uma ironia de Deus pra me fazer ou perder a vergonha e pedir um isqueiro ou ir até Chumbinho só pra alugar o isqueiro dele. Mas Deus me deu uma folguinha, depois de 10 tentativas, consegui acender o carlton.
Eu tava começando a mergulhar em meus sentimentos, em meus medos e no abismo temporal que tá me puxando, quando um jovem bonito vem fumar na varandinha. Ele primeiro estava a dois passos de mim, achei que ele estava esperando alguém sair da sala, mas aí depois sacou a carteira de cigarro e ficou em pé do meu lado numa estreita varanda da minha casa grande UFBa nas propriedades do meu feudo.
Aquilo me intrigou muito, cara.
Pensem na cena, eu sentadinha numa cadeira azul no terceiro andar do ihac no canto esquerdo de uma varanda bastante estreita e um moço em pé do meu lado encostado no ferro da balaustrada. Os dois fumando um cigarro e um silêncio constrangedor.
Nessa hora meus pensamento que eu penso que seja do formato de um cavalo selvagem alado, preparou o vôo para gastar muito naquilo.
Na verdade, primeiro eu fiquei pensando em mini-frases pra desenvolver uma conversa, mas pra mim, nada era conveniente, muito menos pareceria natural.
- Eles nunca vão terminar essa obra né?
- Você faz BI de saúde?
- O terceiro andar é esquisito né, só tem gente de saúde?
- Você daqui de cima parece que é dono da UFBa e que isso tudo é um feudo né?
- Esse pessoal né... faz festa quase toda sexta-feira.
Depois fiquei pensando porque ele também não poderia se esforçar pra esboçar algum tipo de diálogo. Porque? Ele simplesmente podia estar alí só pra fumar o cigarro nele, não tava afim de fazer novos amigos. Mas porque ele ficaria em pé do meu lado, sendo que tinha tantos outros modos dele fumar um cigarro naquele estranho terceiro andar? Aí eu assumi minha fase espiritual e deísta, então eu pensei: foi Deus.
E pensei, será que é isto a concretude do que eu escrevi no meu orkut sobre possibilidade de amor? Sim, eu poderia amar aquele rapaz.
Ele também podia me amar como jamais ninguém amou, sentir ciúme de mim, me arrebatar de paixão com uma noite inesquecível de sexo, eu podia apresentar ele pra minha família, a gente podia ir de mão dada ao cinema e eu finalmente mudar de opinião e achar o cinema um bom lugar pra namorar. Ele poderia gostar da minha mão suada, passar tardes comigo conversando sobre literatura e política. A gente podia casar, ter 3 filhas e morar no campo.
A gente podia parar de fumar juntos. Pra depois termos uma recaída deitados na cama, suados, na nossa lua de mel e lembrar como nos conhecemos, através do motivo de ir fumar um cigarro no terceiro andar do ihac.
O cigarro já estava acabando e eu não ia mais ter motivo pra estar alí. Acho que meu problema não é nem a timidez, mas não saber falar besteira e não ficar vermelha ou nunca achar que o que vou falar é legal.
Mas também se você for parar pra pensar, pode ser que ele tenha namorada, noiva, seja gay. E eu aqui brincando com meus pensamentos sem limites.
"Vou deixar minha bolsinha cair, pelo menos ele vai olhar meu decote nas costas"
"Eu sou muito idiota velho! Vou no banheiro"
"Será que ele vai passar aqui e olhar? Vou lavar minha mão e chupar o icekiss de canela"
"Vou pra aula, ele acabou o cigarro agora, tá olhando o celular, poxa..."
É, eu podia amar ele, mas fica pra próxima.
Entro na sala, olho meu professor "Hum... Eu podia amar ele também, sempre quis pegar um professor e ter um romance ardente escondido".
Além de tudo, mudo de idéia muito fácil.
Mas o amor está aí pra ser amado e as possibilidades para serem aproveitadas, se as pessoas não forem abestalhadas que nem eu:
“Há alguns dias, Deus – ou isso que chamamos assim, tão descuidadamente, de Deus – enviou-me certo presente ambíguo: uma possibilidade de amor. Ou disso que chamamos, também com descuido e alguma pressa, de amor.”