Fui buscar no Santo Google o significado e etiologia do sagrado e do profano porque, uma vez lançada na trilha de meu proprio significado para ambos, me deparei, em mim mesma, com uma inversão do conceito vulgar para a qual até agora não havia atentado suficientemente. Venho já de uma ponte entre crenças diferentes. Sou não apenas uma judia baiana (o que já é grande privilégio), mas filha de um judeu comunista materialista ateu com outra judia praticante, embora meia-boca na prática. Cursei escola israelita no primário, no ginásio a minha preferida de todo sempre, o subversivo, esquerdista e iconoclasta Colégio de Aplicação, e no segundo grau, depois que o Aplicação foi fechado pela ditadura, fui parar no católico Maristas. Bom, junte à mistura as visitas, desde jovem, às festas do terreiro de São Gonçalo do Retiro, onde o sócio de meu tio na oficina mecânica, o mulherengo, cachaceiro e divertidíssimo Eufrosino, era ogã. No intervalo dos rituais dava uma saidinha pra tomar uma, oferecia pra gente e depois distribuia drops de menta.
Mas o que realmente marca minha lembrança quando penso em sagrado é a memória da alegria. Não apenas a alegria de ter a casa cheia porque era perto da praia e vinha todo mundo nos finais de semana, de ter Silvio Caldas tocando e cantando no jardim, de mil coisas como partidas de poquer assistidas, teatro, músicas, e tudo isso não com amigos infantis mas com os de meus pais. Todo um padrão boêmio a ser impresso. Não, desde criança, a alegria ritual do Carnaval é a que me arrebata e o único momento onde me sinto próxima ao sagrado.
Ouço com frequencia falas sobre o sagrado e sua vinculação aparentemente inevitável ao religioso e ao divino. Como é possível então que todos os rituais religiosos que já presenciei me pareçam, sem qualquer exceção, despidos de qualquer centelha do sagrado? Invariavelmente a impressão que me fica é de algo cotidiano, humano, vulgar, servindo a interesses mundanos. Não quero dizer com isto que estes rituais e religiões não possam ser fonte do sagrado para outros. Mas estaria mentindo se afirmasse que podem sê-lo para mim.
A única ocasião na qual me sinto tocada pelo sentimento do sagrado é em meio ao Carnaval, e é principalmente por isto que costumo dele participar, religiosamente. Mais curioso ainda é que não associo este sentimento do sagrado a uma divindade externa, a uma idéia de um deus qualquer. Se o fizesse já teria deixado de ser agnóstica. É a fonte deste sentimento, como para Freud o sentimento do “oceânico”, que me intrigou. A inversão aparente é em si de mais fácil explicação. Desde o advento da cultura judaico-cristã a religião e o sagrado passaram a ser associadas à seriedade, à circunspecção. Não à toa Umberto Eco cria um monge que mata em nome da não-divulgação de um suposto tratado de Aristóteles enaltecendo o riso. Este, claro, é coisa do diabo. Mas há uma tradição mais antiga, tão forte e cruel quanto a da cristandade, onde a alegria e a ebriedade, e não a sobriedade, são os portais para o deus. Dionisio e seu cortejo se atualizam na Mudança do Garcia ou atrás de Moraes Moreira, sua alegria e seus festejos não menos tocados pelo deboche, transgressão, sangue e loucura do que na mais remota Antiguidade. Seu transcorrer é tão ritualizado quanto qualquer missa em latim, e seus devotos com maior frequencia crêem no que pregam, embora não saibam que o fazem. Assim como não sabem no que crêem nem para que, e assim o sermão é dos mais eficazes.
E meu sagrado particular? Se não creio, nem se dirige a uma deidade reconhecida, tem uma direção? É ao mesmo tempo externo e interno este sagrado? Elimine obrigações e leis que não as do evento em si, quebre os tabus do sexo e da violência, e está criado um espaço e um tempo no qual pode ocorrer o inusitado, o invulgar, o não-banal, o não-mundano, o não-cotidiano. Ao portar a máscara do folião as máscaras caem por terra e se revela, em toda a sua majestade, Sua Divindade o Desejo.
Ou citando o grão-sacerdote Moraes Moreira:
Eu sou o carnaval em cada esquina/do seu coração
Pelas vias, pelas veias escorre o sangue, o vinho
A pé ou de caminhão não pode faltar a fé/
O Carnaval vai passar
Meu amor quem ficou/nessa dança, meu amor
Tem fé na dança
Nossa dor, meu amor/é que balança, nossa dor
O chão da praça
Metais em brasa brasa brasa que ardia
Mas não vai demorar/são três dias de dor
Mas se o mundo cantar/são três dias de amor
Minha Carne é de Carnaval
Meu coração é igual